Diários de Lisboa

Um comentario por dia, dá direito a uma lobotomia...

terça-feira, junho 24, 2003

S/ Título

As dificuldades adensam-se e isso não deveria estar na exacta proporção do fascínio. Digo, a exaltação também tem os seus pés de barro – como os santos, aliás! Digo-o porque sou subitamente assaltado pelo temor do humano, ou melhor, pelo que sobre ele está inscrito na fragilidade do papel. O que está escrito como ideia (para) das pessoas nunca poderá reduzir (explicar, definir, estruturar, prever) a extensão do humano. Este é algo que acontece quando é, explica-se a ele próprio na acção. Uma acção animada por uma miríade de paixões tão vastas e nebulosas como a palavra.
Fatalmente somos também reféns do sonho. Somos barro feito de ideais embebidos na voz e nas mãos, que tentamos moldar pelas acções. E é nesse ofício que, não raras vezes, abdicamos. Ou porque esquecemos ou porque a construcção do nosso mundo faz-se como um puzzle.
Pode ser uma questão de contexto ou de contextos para os quais é constantemente necessário encontrar as peças adequadas - é a fragilidade do poder. Ou pode ser uma questão de sonho diurno, de enfatuamento total pela procura das peças - é a fragilidade das cores.
Não se trata aqui do velho cliché da conjugação dos opostos, porque entre eles existem atracções. O sonho é centrífugo e a acção centrípeta – os conflitos gritam a sua inevitabilidade na concretização da vida. Somos selectivos porque nos ideais não cabe tudo o que somos; e somos imperfeitos porque nunca alcançaremos essa plenitude da soma abstracta de acções e paixões. A realidade acende-se-nos unicamente no limite de cada passo. Não mais. Essa é a moral possível desta história de reconcliliação: os olhos que carregam os sonhos é que vêem onde pomos os pés.

B-Line

terça-feira, junho 17, 2003

Manguito nos espanhóis, já!

Esta história recente da Comissão Europeia querer reduzir a zona económica exclusiva portuguesa das 200 milhas náuticas para umas miseráveis 12(!), cheira a peixe pôdre. Os nossos pescadores andam a receber subsídios há anos para reduzir a sua frota pesqueira. E não me venham com a treta de que eles não se importam até porque querem é o dinheirinho vivo. Além de um barco custar cerca de 4 mil contos e por cada um abatido ser-lhes pago, em média, mil contos, há ainda que contar com o golpe psicológico da destruição do meio de subsistência e da terrível sensação de impotência que deve provocar. Mas o mais engraçado é que esses subsídios existem porque supostamente o objectivo maior da Comissão Europeia é controlar a pressão sobre os recursos dos mares portugueses. Ora, mesmo que se tivesse dado subitamente um milagre marítimo de multiplicação dos peixes, abrir as nossas águas a uma das mais poderosas frotas pesqueiras do mundo é, no mínimo, uma "sopranice", uma descarada e criminosa negociata. É estender a passadeira vermelha a uma indústria que já esgotou os seus mares com um abuso da pesca de arrasto, sem que ninguém soltasse um "ai" de preocupação ambientalista!
E nem sei se devo falar da profunda consternação que me causou ver a actuação do nosso pobre Ministro da Agricultura e Pescas: "se as negociações falharem, demito-me!". Ah, valente, assim é que é: se nos canibalizarem um dos mais preciosos bens nacionais, tu amuas e viras costas. Mas bates a porta com estrondo. Ena, que coragem arrepiante, que sentido de Estado, que maravilhoso ballet político o teu, pá! Que não se te atravesse nenhum jaquinzinho espanhol no esófago, é o que te desejo…

Vertida a bílis desta maneira na bandeja deste blog, recentremos os argumentos. E, antes que me acusem de qualquer tendência xenófoba ponho já as coisas em pratos limpos quanto à escolha do título: esta é também uma opinião com alvos internos, dirigida essencialmente ao nosso povinho e aos seus comportamentos. Só por consequência acaba por atingir "nuestros hermanos", que não estão isentos de culpa. Bem pelo contrário: é um tiro em ricochete.
Este caso das pescas traz à tona a velha lenga-lenga da debilidade do nosso tecido produtivo, da nossa fragilidade no embate com a concorrência de indústrias estrangeiras em vários sectores, enfim, do produto nacional versus produto estrangeiro. Em muitos casos, a opção é quase impossível, ou porque simplesmente não existe uma alternativa nacional, ou porque os produtos são de facto uma miséria quando comparados com outros.
Mas não é assim em tudo. Chamem-lhe ulta-nacionalismo, exagero patriótico, ou lá o que quiserem, mas a verdade é que, cada vez que estou na posição de consumidor, tenho sempre a preocupação de comprar produtos portugueses. Principalmente nos alimentares, a minha atitude está no limite da guerrilha comercial: mesmo que sejam ligeiramente mais caros, esse esforço financeiro, na minha opinião, compensa. E, muitas vezes, se há um determinado produto que me apetece comprar, mas a origem não é nacional, não tem lugar no carrinho de compras.
A atitude é mais pró-activa quanto à produção nacional do que proteccionista face a produtos estrangeiros. Do mesmo modo, esta não é uma opinião anti-europeísta: o mercado único foi a melhor coisinha que nos aconteceu em termos económicos nos últimos anos. Pena é que não tenhamos capacidade para o aproveitar e ele sirva mais para as importações do que para as exportações. Mas vamos lá a pôr um travão nessa triste ladainha, interiorizada já por todos nós com uma pontinha de cinismo, da falta de competitividade do sector produtivo nacional, nomeadamente o alimentar! É que ele talvez não seja tão pujante porque é minado na sua própria terra-natal. Não esqueçamos a liberdade de escolha, essa maravilha da democracia aplicada ao consumo. Eu tenho possibilidade de escolher e escolho produtos nacionais. Por todas as razões e mais alguma, agora ainda mais espicaçadas depois desta tentativa canibal de ingerência nos nossos mares por parte dos espanhóis... manguito declarado nessa treta de "hermanos"! E, já agora, por "arrasto", manguito também na tromba do Comissário Fischler!
Gosto de viver esta utopia de acreditar que a minha atitude pode ajudar a produção nacional. Sim, é uma atitude sentimental (enternece-me verdadeiramente) mas com uma profunda convicção racional e económica: ora desatem lá todos a fazer o mesmo a ver no que é que isto dá…

B-Line

segunda-feira, junho 09, 2003

A arte do tédio

Bulício da cidade - eis uma expressão buliciosa que não promete nada de bom.
Bulício parece jargão médico para definir uma doença venérea ou congénita que aflige as artérias da cidade. Contra o bulício não há nada a fazer. Não há paliativos, prozac´s, sedativos que reduzam o bulício.
O bulício é a peste negra dos urbanos, é como Átila o flagelo de Deus, e para o combater só nos resta o tédio.
O tédio das horas mortas, passadas devagar a fugir do sol. O tédio de fumar cigarros vagarosos e contar as caganitas de pombo cristalizadas nas estátuas dos nossos infantes. Contra o bulício, cultivemos o tédio de nunca ir ao teatro, de chegarmos sempre atrasados a tudo - porque como dizia o Oscar Wilde - a pontualidade é uma perda de tempo.
Passar ao lado de cinemas, soirés, leitarias, tremoços e aguardentes de má índole, como o diabo passa desdenhoso da cruz, eis como combater o bulício.
Virando sistematicamente as costas ao Tejo, aos miradouros, aos polícias e aos cães dos polícias. Escrevr num post-it a palavra idiota e espetá-lo na testa, passeando um ganso de papillon pelo Chiado abaixo, Chiado acima.
Eis como dar cabo do Bulício. Com o tédio, saboreando o tédio, o glorioso tédio que não é mais do que desperdiçar o tempo como um escroque espatifa as fortunas de viúvas ricas. Cultivando a arte do tédio podemos sobreviver ao bulício e olhar para o céu para ver as horas a passar.
Gostava de viver numa cidade onde o tempo só fosse sensível pelo alastrar da sombra. Gostava de viver numa cidade onde o tempo comesse milho na minha mão, em vez de cagar nas estátuas dos infantes e me perseguir pelas artérias esclerosadas da Cidade.

Vodka 7